Escrito para a Revista Velejar. Deveria ter sido publicado na edição 31 mas a revista acabou publicando outro artigo meu sobre o V Encontro Nacional da ABVC. 
Nesse meio tempo complementei o texto, mas não houve alteração para a revista. Abaixo, o original na versão completa que escrevi.

Arqueologia amadora na Região de Parati


"(...) Não há mais barulho nas moendas do engenho! ...A moenda quebrou, a civilização mudou virou mineral fluido diluído no doce azedo das lembranças (...) Entre as chibatas e as garapas, as rapaduras e as ditaduras do solo restou apenas o sonho de um mundo adocicado (...) próprio para lembranças, ecos e silêncios..." 
José Lins do Rêgo - Fogo Morto

Quem nunca sonhou em ser um arqueólogo quando criança? E quem não revisitou esse desejo ao assistir as aventuras de Indiana Jones no cinema? Durante as velejadas na região de Parati, em muitas ocasiões passamos por locais que podem nos dar essa oportunidade, sem sequer nos darmos conta. O passado histórico dessa área é rico e nos conta muito sobre como a região foi ocupada e sobre seu desenvolvimento. Alguns locais que usualmente passamos quando velejamos por lá, nos dão pistas deste passado interessante e muitas vezes curioso. E na busca desse passado, podemos aprender muito, e – confessemos aqui – depois do desenvolvimento da internet, com bem menos trabalho nas pesquisas...

Nomes curiosos como “Ilha do Mantimento”, nos dão pistas que desembarcam num tempo em que os navios não conseguiam acessar a cidade e precisavam parar na ilha a entrada da baia para desembarcar as provisões, já naquela época devido a mudança do leito do Rio Pereque-Açu que passou a desaguar mais próximo da cidade, e conseqüentemente assoreando a baia. Os canhões perto do píer principal da cidade, também estiveram presentes em outras fortalezas na região. Ao todo eram seis fortes que faziam a segurança da cidade que centralizava riquezas como o ouro vindo de Minas Gerais ou a cana-de-açúcar processada.

Hoje, ainda podemos ver resquícios de todo esse passado nos canhões e engenhos, claro, em alguns locais mais, e em outros, menos preservados embora de maneira geral, todos abandonados tanto pelo poder público quanto pelos atuais proprietários das terras onde os sítios arqueológicos se encontram: no forte Defensor Perpétuo (1703) o melhor conservado, localizado próximo à cidade (quinze minutos de caminhada a partir do centro histórico), no Quartel da Fortaleza da Patatiba, situado ao lado da Igreja Santa Rita, (também de 1703) e atualmente abrigando a biblioteca municipal, na Fortaleza da Ilha da Bexiga, que, aliás, já aparecia numa pintura de Jean Baptiste Debret feita em 1827, a Fortaleza da Ponta Grossa, na Fortaleza da Ilha dos Meros. A Fortaleza de Iticupê, situada na ponta do morro do mesmo nome, possui anda a trincheira de pedra e três canhões que também podem ser vistos por quem passa pela Ponta da Tapera (23°12,68 e 44°40,64W), no alto do morro, guardando a entrada da cidade.

Foto: fortaleza1.jpg ou fortaleza2.jpg)

Legenda: Fortaleza de Iticupê: ainda guardando a entrada da cidade

No caso dos engenhos, alguns processavam a cana para o açúcar, enquanto outros se dedicavam a produção da cachaça, que, não por acaso, acabou ganhando o nome de Parati. Já no século XVI havia os engenhos chamados "trapiches”, movidos por tração animal (ate sessenta bois, dispostos em grupos, que faziam revezamento, trabalhando quinze a dezesseis horas por dia), e os denominados “engenhos reais", que eram movimentados por força hidráulica dividindo-se ainda em "copeiros", "meio-copeiros" e "rasteiros", conforme a altura da queda d’água.

Um exemplo de preservação dos antigos engenhos é a famosa Fazenda Muricana (estrada para Cunha), que inclusive ainda produz cachaças à maneira do século XIX em suas instalações bem conservadas, embora já um pouco descaracterizadas, mas conseguindo unir turismo, preservação e renda.

Dono de várias empresas que atuam no setor imobiliário e financeiro, com sede em Chiasso, uma pequena cidade localizada na fronteira da Suíça com a Itália, o empresário Roberto Sanvido comprou em 2002 uma empresa falida, mas proprietária de alguns imóveis no exterior. Ele descobriu no espólio adquirido uma pequena jóia: um belo casarão construído no século XVII na baía de Parati. Localizado próximo da Ponta da Boa Vista no local conhecido como Praia do Engenho (23°13,74 e W44°41,63), ainda é possível ver na propriedade de Sanvido o casarão que outrora abrigou o “Engenho Boa Vista”, infelizmente sem os cuidados merecidos. Lá, entre as generosas goteiras, paredes e telhado em péssimo estado, e nenhum projeto atual de preservação (pelo menos conhecido ou divulgado), ainda e possível ver claramente o local onde ficava a roda d’água, a senzala, e perceber a base da arquitetura colonial das classes mais abastadas da época. Nessa casa inclusive morou Julia Mann, a mãe brasileira e paratiense do famoso escritor alemão Thomas Mann.

(Foto: Julia Mann)

Na praia da Tapera, na Enseada do Sitio do Forte na Ilha Grande (23°08,17 e 44°17,39W), também é possível ver as colunas que sustentavam a roda d’água e a cobertura do local de processamento da cana, originalmente uma grande cobertura de telhas de uma só água, como convinha à arquitetura colonial em meados do século XIX. Após seu apogeu, a decadência tratou de batizar a “tapera”, palavra que segundo o dicionário Houaiss designa uma “residência ou fazenda em ruínas, tomada pelo mato”. Hoje, confinado por uma cerca de arame farpado e placas de “Propriedade Particular Proibida a Entrada”, esse é mais um dos sítios arqueológicos brasileiros abandonados à própria sorte e longe da visitação e da preservação que traz cultura e renda...

Fotos: (engenho1 a 4.jpg)

Já na Praia Grande da Cajaíba (Enseada do Pouso, 23°16,11 e 44°34,75W), subindo a trilha que acompanha o Rio Itaoca, chega-se a uma cachoeira com uma piscina natural visivelmente construída para represar as águas, e segundo os moradores locais, feita pelos escravos do antigo engenho que funcionava por ali, hoje sem nenhum sinal de sua existência.

Esse não é o caso do engenho localizado no Saco do Jurumirim, (23°12,3 e 44°39,57W), na praia conhecida como “Praia do Engenho”, onde ainda podemos ver a roda d’água e as colunas do antigo engenho que funcionava alí. Numa visita, em busca por qualquer tipo de artefato ou resquícios da época no entorno das ruínas, acabei encontrando alguns cacos de louça que nos contam um pouco da história do Brasil do século XIX.

Nessa época (séc. XVIII e XIX), era comum que o lixo doméstico fosse enterrado ou simplesmente jogado nos arredores. Hoje, esses depósitos de lixo são ricas fontes de pesquisa para a arqueologia.

Após a abertura dos portos (1808), com a chegada da família real portuguesa, no início do século XIX, chegam ao Brasil as louças européias, primeiro as inglesas, depois as alemãs e as francesas. O Brasil somente possuiu fornos para queima e vitrificação de porcelana em escala industrial a partir da década de 1920, por isso a louça encontrada em geral em sítios dessas épocas são européias. Eram produzidas em grande escala e baratas, o que ajudou a disseminá-las por todo o Brasil, do Rio Grande do Sul ao Nordeste. A região de Parati possuiu no seu auge em 1863, 150 engenhos registrados. A partir de 1888, com a Lei Áurea, a produção dos engenhos que era baseada no trabalho escavo caiu de produção e os engenhos foram fechando.

Nesse engenho (Engenho D'água) acabei realizando algumas buscas durante a visita mais recente que fiz por lá. O lixo está localizado no antigo leito do rio hoje inexistente e desviado e que movia a roda. Ela, porém, ainda resiste, assim como os cilindros que moíam a cana, e algumas colunas, espalhados pelo local. Esse engenho começou a funcionar em 1803 com o nome Fazenda Capela de Santa Luzia, em 1925 foi vendida ao Sr. Luiz Gonçalves que rebatizou a propriedade com nome Engenho D'Água, pois o maquinário do engenho era movimentado por correntes de água desviadas de uma cachoeira até a roda. O engenho esteve ativo até 1953 quando seu proprietário faleceu. Esse  engenho ficou famoso por produzir a "laranjinha" pinga de flor de laranjeira que não era vendida, e apenas os presenteados com uma garrafa poderiam tomar.

Fotos: (engenho1 a 4.jpg)

Com essas informações confrontadas com pesquisas fotográficas de peças similares e com técnicas de elaboração das porcelanas através do tempo, constata-se que as peças descobertas datam de época entre o final do século XVIII e a primeira metade do século XIX.

(Foto shellazul.jpg)
Legenda: Shell-edged azul encontrada no Engenho d’água

·                     Nome: "Shell-edged" azul

·                     Data de produção: De 1780 a 1840

·                     País de origem: Inglaterra

Chamada "Shell-edged" (borda em forma de concha), foi muito popular no Brasil, apesar de importada da Inglaterra. Apareciam principalmente em pratos. As cores originais eram azul e verde, ou ainda vermelhas, embora essas duas últimas mais raras. Os exemplares mais antigos eram mais bem pintados, da borda para dentro. Nos mais recentes a pintura era feita lateralmente, acompanhando o formato do prato. A pintura ainda poderia ser reta (caso de fora para dentro) ou curvada. As características do fragmento achado aparecem nos pratos fabricados entre 1809 e 1831.

 

Foto (creamware.jpg)
Legenda: Creamware encontrado no Engenho D’agua

·                     Nome: Creamware

·                     Data de produção:  1762 a 1820

·                     País de origem: Inglaterra

Faiança fina branca, sem decoração, (tipo Creamware) de fabricação inglesa. Criada em 1762, era proveniente da queima em fornos de temperaturas mais altas, tendo como resultado uma louça mais amarelada e brilhante.

Já num passeio pela Ilha Cunhabebe Grande (22º 58,13 e 44º 25,16W), próxima à Porto Marina Bracuhy encontramos algumas pistas mais óbvias: as marcas dos fabricantes na louça. Também através de uma pesquisa pela web, a história do Brasil reaparece na louça, contada, desta vez, no próprio Brasil.

(Foto: Stoeugenio.jpg)

Legenda: Santo Eugênio: entre 1950 e 1967


Na década de 50 a fábrica de louças “Santo Eugênio” foi considerada a terceira indústria de louças do Brasil. Eugênio Bonádio, ex-funcionário de uma outra grande fábrica de louças na cidade de Jundiaí (SP) foi o responsável pela instalação da indústria em 1920, quase por acaso. No percurso de Jundiaí à Pindamonhangaba, onde Bonádio instalaria sua fábrica por conta dos incentivos prometidos pelo então prefeito do município, o trem em que viajava quebrou em São José dos Campos, e ele aproveitou para visitar uma antiga aluna de piano que era sobrinha prefeito da cidade de São José com quem comentou a intenção de abrir a fábrica em Pindamonhangaba. Sabendo das intenções de Bonádio, o prefeito prometeu melhores incentivos para que a empresa fosse instalada em São José dos Campos.

Eugênio Bonádio aceitou e recebeu da prefeitura uma área perto da Estação Ferroviária. Pela sua excelência de produção, a fábrica ficou nacionalmente conhecida e possuía 400 trabalhadores com representantes em todas as capitais do país. A indústria de louça contribuiu decisivamente para que o nome de São José dos Campos fosse conhecido em todas as partes do Brasil. No ano de 1967 ela foi desativada.

Pela análise e comparação das estampas da fábrica que eram diferentes conforme a época, a louça achada data entre 1950 e 1967.

 

(Foto) maua

Legenda: Mauá – 1954 a 1964

 

Outro pedaço de louça garimpado na mesma região foi encontrado com a estampa da Porcelana “Mauá”, que na verdade era uma marca da Fábrica Miranda Coelho.

Essa fábrica foi fundada em 1914 como “Fábrica de Louça Viúva Grande e Filhos”, em Mauá, no estado de São Paulo. Ao longo dos seus 50 anos de existência teve outros diversos nomes: Companhia Industrial do Pilar, Comércio e Indústria João Jorge Figueredo S/A, e por último, a partir de 1950 até seu fechamento em 1964, Cerâmica Miranda Coelho, tendo sido também um marco para o desenvolvimento da cidade de Mauá em sua época. Consultando referências, percebe-se que o símbolo da louça data provavelmente entre 1954 e 1964.

Seguindo adiante, a próxima parada para uma pesquisa interessante, e na própria Porto Marina Bracuhy em cujo interior estão as ruínas de um engenho. Inaugurado a 12 de janeiro de 1885 na fazenda que levava o mesmo nome, o engenho não funcionou por muitos anos. Sua construção deu-se de maneira pouco planejada e repleta de problemas. Inicialmente o maquinário foi encomendado e comprado sem que o local de instalação estivesse decidido, o que fez com que houvesse deterioração de pecas que ficaram ao relento por um bom tempo. Decidido o local, este deu-se longe do centro comercial e num local de difícil acesso por mar, assoreado e raso, obrigando a construção de um cais de mais de 250 metros ate um local de embarque, e mesmo assim permitindo embarcações com apenas 3,8 metros de calado. Com a crise após a abolição da escravatura, o Engenho Bracuhy selou sua breve trajetória. Hoje, o local da construção original esta dentro da propriedade do Hotel Bracuhy, construído ao lado das ruínas do engenho. Ainda e possível caminhar pela construção apesar de bastante deteriorada e sem nenhuma conservação. Pelo contrario, no final da década de 90 o local foi usado como boate, tendo sido cimentada uma grande área central, alem de implantado um palco, que ainda permanece por lá. A construção e imponente, de paredes altas feitas de tijolos e rodeada por algumas palmeiras. As grandes janelas abertas para a paisagem e as altas colunas ajudam a compor os amplos ambientes. O prédio central acima do pavimento térreo tinha mais dois andares sendo a construção de maior altura presente no conjunto. Em alguns locais e possível observar-se túneis subterrâneos que levavam um curso de água abaixo do nível do piso.

 

Da próxima vez em que você estiver velejando pela região de Parati, ou mesmo outra região do Brasil rica em história, procure observar se não está próximo a um desses sítios arqueológicos... e lembre-se de levar seu chapéu de feltro e cantarolar o tema de “Indiana Jones”: Tan-taran-tan...tan-taran...

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