Quando a Escola Flutua...

 

         Algumas famílias que velejam pelo mundo têm optado por educar seus filhos “em casa”, mesmo que essa casa flutue, aderne e esteja visitando lugares diferentes em curtos períodos de tempo. São as famílias que educam seus filhos a bordo de um veleiro enquanto viajam pelo mundo. E essa pode ser exatamente a grande qualidade que educar os filhos a bordo: trazer para o processo de aprendizagem o contato das crianças com vivências na diversidade cultural, política e ambiental. Seja sincero: se você pudesse estudar a vida animal nadando ao lado de uma tartaruga ou mergulhando entre corais e peixes, ficaria com as fotos – muitas vezes mal impressas – dos livros didáticos? Sem falar que estudar geografia e história, fica bem mais interessante quando se está diante do cenário dos acontecimentos...

 

Um outro aspecto positivo que podemos observar na educação a bordo é o maior tempo de dedicação dos pais e a conseqüente qualidade no relacionamento da família. O tempo que ficam juntos no espaço confinado de um veleiro propicia essa relação e torna necessário o estabelecimento de regras claras quanto ao espaço, aos procedimentos rotineiros e fortalece a segurança e auto-estima nas crianças, alem do respeito ao espaço do outro.

 

Em 1984 Vilfredo e Heloísa Schürmann partiram para uma viagem que duraria dez anos, acompanhados dos filhos Wilhelm, David e Pierre, na época com sete, dez e quinze anos de idade. Heloísa Schürmann, que é professora de inglês formada pela New York University, assumiu a educação dos filhos a bordo: “O espaço do barco não era restrito, pois não existiam paredes na minha sala de aula. Podíamos ter aulas dentro do barco, no cockpit, debaixo de um coqueiro, na encosta de um vulcão, observando as baleias e golfinhos ao lado do barco, em uma tribo de nativos, enfim, onde quer que se apresentasse uma oportunidade” – comenta Heloísa. E completa: “Para mim, educar não é um processo somente da escola. Como mãe e professora aproveitei cada experiência e atividades novas no dia-a-dia para compartilhar com meus filhos-alunos”.

 

Wilhelm e David eram apenas crianças quando saíram do Brasil. Pierre, adolescente. Os três cresceram a bordo e estudaram por correspondência. Wilhelm foi o único dos filhos que permaneceu dez anos ininterruptos a bordo. Aprendeu três idiomas fluentemente e quando voltou ao Brasil, em 1994, decidiu ser atleta profissional. Atualmente é campeão brasileiro em cinco categorias (Wave, Fórmula, Slalom, Speed e longa distância). “Depois de viver e crescer a bordo, não consegui me adaptar à vida rotineira de terra. Faço o que gosto, sempre ao sabor das ondas. É uma filosofia de vida que aprendi no mar. Sempre que possível dou uma fugida do circuito mundial para navegar com a minha Família”, comenta.

Em 1988, Pierre Schürmann decidiu estudar administração de empresas nos Estados Unidos e não prosseguiu viagem, morando por lá até 1994. Pioneiro da internet, em 1995, já no Brasil, criou o Zeek!, site de busca que, após tornar-se o segundo maior do país, foi comprado pela StarMedia. Em 2000 deixou a StarMedia e fundou a Conectis Experience, empresa da qual é o atual presidente.

Em 1991 David aproveitou uma temporada da Família na Nova Zelândia e lá graduou-se em cinema e televisão. Construiu carreira internacional como diretor e produtor de programas de televisão, documentários e filmes comerciais. Só voltou ao Brasil em 1999 e recentemente realizou o filme “O Mundo em duas voltas”, contando a saga da família, seu primeiro longa-metragem. “Passei muitos anos atrás das câmeras. Mas como a vida no mar é agitada, me especializei também no lado business. Minha experiência como cineasta tem sido excelente para nossos projetos e aventuras”, afirma David.

Traçando a mesma rota, o casal Rodrigo Do Vale e Márcia Branchini - ele 40 anos, executivo financeiro, ela 38 anos, executiva de marketing - e seus filhos Nicollas de 7 anos e Raffael de 2 anos largaram as amarras e subiram a costa brasileira a bordo do veleiro “Cavalo Marinho”, até ancorarem no Caribe onde estão atualmente. “Nossos filhos convivem com diversas crianças em todas as ancoragens que passamos. Têm uma visão bastante diversa do mundo, já que têm um convívio com nacionalidades diferentes todo o tempo”, explica Rodrigo.

           

        Assim como os Schürmann, a família Do Vale optou pelo método a distância da Calvert School (www.calvertschool.org). Aqui entra um outro componente na educação de bordo: a língua estrangeira. O que pode ser um complicante em princípio, também pode ser uma oportunidade de aprender uma outra língua mais cedo e de maneira mais natural do que aconteceria no Brasil. Segundo Márcia “no início achei que não ia dar conta. Mas com o tempo e muito esforço consegui alfabetizar meus filhos em duas línguas e hoje me orgulho muito disso”.

 

        O material da Calvert School é composto de apostilas de estudos, livros de leitura, material lúdico, musical, trabalhos em computador (via internet) e um vasto material de apoio aos pais. “A cada trimestre submetemos os testes via correio para a Calvert. Depois recebemos feedback” explica Márcia. O certificado emitido pela Calvert, entretanto, não é reconhecido pelo MEC o que obrigará Rodrigo e Márcia a tomarem um dos possíveis caminhos para revalidar os estudos de seus filhos caso retornem ao Brasil. No exterior, entretanto, isso não ocorre e bastaria prosseguir os estudos de maneira natural.  

Para quem pretende fazer uma carreira profissional, digamos, menos tradicional, a experiência da diversidade pode ajudar e muito. Multinacionais exigem essa vivência, além de viagens constantes e características como uma visão global dos problemas enfrentados no dia-a-dia de trabalho, ou a coragem de enfrentar novos desafios. Atualmente esses são componentes da personalidade do profissional bem sucedido no Brasil e no exterior. Entretanto, para inserir-se no mercado profissional tradicional é preciso entender que nem tudo é assim tão romântico e ideal. Além da competência, as empresas exigem experiência, diplomas de boas universidades e no mínimo pós-graduação. Se os estudos não passarem de uma formação inicial, as chances de se conseguir sucesso são poucas.

 

         Além dos aspectos formais, e preciso lembrar que educação é um processo complexo, amplo e de longa duração. Pressupõe relacionamento e desenvolvimento de aspectos sociais, exatamente para que a criança – futuramente o adulto – possa inserir-se na sociedade sem estabelecer conflitos. Além disso, misturar a relação de ensino com a relação familiar, pode confundir conceitos onde os limites precisam ser claros.  Disciplina e comportamento em situações corriqueiras desejáveis na sociedade atual como bater na porta antes de entrar, ter paciência com o amiguinho chato, valores como respeito ou saber comportar-se de maneira adequada dependendo do ambiente que se freqüenta, por exemplo, são coisas que não aprendemos isolados do convívio constante com outras pessoas. É preciso que alguém fora desse âmbito familiar possa colocar a criança frente a situações que também compõem a diversidade comportamental da sociedade, mostrando limites e conseqüência dos seus atos. A diversidade cultural pode confundir esse tipo de conceito, já que cada país, cada comunidade, tem suas regras sociais. Se o responsável pela educação estiver atento, isso pode ser benéfico. Do contrario, passa a ser uma confusão para a criança. E para isso o próprio professor precisa de conhecimento e disciplina. Para quem tem esse tipo de postura e uma vivência educacional, a experiência de educar pelo mundo pode ser melhor aproveitada: “Minha maior dificuldade era sentar diariamente com meus filhos, enquanto o mar azul e praias de areias brancas nos convidavam para um “dolce far niente”. Precisei redobrar minha disciplina como professora, como mãe e como pessoa”, comenta Heloísa Schürmann. O método da Calvert School, por exemplo, não propõe prazos. “O ensino a distância é bem flexível. Você estuda da maneira que achar melhor. Não há datas, mesmo por que o conceito é bem focado nas pessoas que realmente necessitam e, portanto, sabem quem não tem uma vida regular”, explica Márcia. Para ela, entretanto, alguns aspectos como a responsabilidade e mesmo aspectos lúdicos poderiam ser melhor trabalhados na educação de seus filhos se eles estivessem em terra, numa escola tradicional. Por outro lado, quando perguntada sobre a relação entre escola e aspectos formais como limites e relacionamento, ela é categórica: “Acho que os meninos estão mais independentes, criativos e com facilidade de se relacionar. Esta vida os expõe a diversas situações onde eles têm que buscar alternativas que, na vida na cidade, estariam a seus pés”.

 

         Outro aspecto que precisa ser visto com cuidado é conhecimento técnico do professor – no caso dos pais - que conta, e muito, para saber quando, quanto e como serão feitos os estudos, e também quanto à formalização dos conteúdos que precisam ser estudados e depois fixados.

A falta de conhecimento técnico e experiência também podem dificultar o processo. È comum nas escolas formais, a detecção de distúrbios de aprendizagem como a dislexia, transtorno de déficit de atenção (TDA), hiperatividade, entre outros, ou mesmo problemas médicos ou físicos menos evidentes, como início de surdez, um sopro no coração, ou síndromes que se desenvolvem lentamente e que no início são difíceis de se perceber, como a distrofia muscular. Numa escola de qualidade há uma equipe de profissionais experientes, e esse tipo de problema não só é detectado, como também a família é orientada a procurar o especialista que vai trabalhar com a criança junto com a escola, como um psico-pedagogo, psicólogo ou médico. Outras vezes, a falta de uma referência média – como numa classe de trinta alunos – dificulta essa percepção. O aluno pode ter o referencial da turma para situar-se no processo de aprendizagem. Outro dado é que numa escola há diversos recursos: biblioteca, multimídia, laboratório, equipamentos para a prática de esportes e atividades culturais e coletivas facilitando o processo de aprendizagem.

 

   O Brasil é um país que pode ser considerado conservador e ate atrasado, se comparado com outros países como Austrália, Japão, Nova Zelândia, Canadá, África do Sul, Reino Unido, México e os Estados Unidos ou outros da Europa, em se tratando dos estudos desatrelados dos órgãos oficiais. Por aqui não se permite o chamado “homeschooling” (educar em casa), ou seja, ensinar em casa os próprios filhos sem a obrigatoriedade de mandá-los para a escola. Ao contrário. Usando a desculpa de tirar as crianças oriundas de famílias de baixa renda do trabalho, (muitas vezes escravo), aliados a uma legislação antiga e com bases de uma tradição paternalista, a lei prevê sanções para pais que não mandam seus filhos para a escola, a partir dos seis anos de idade.

          

          Em 2000, Márcia e Carlos Vilhena, um casal de Anápolis (GO), enviou um pedido ao Conselho Estadual de Educação de Goiás para regularizar a situação dos filhos, que freqüentam a escola apenas para fazer as provas e entregar trabalhos. O caso foi encaminhado ao Conselho Nacional de Educação, onde o então presidente Ulisses de Oliveira Panisset negou a solicitação e afirmou que o ensino domiciliar não tem amparo legal. A família entrou com recurso e conseguiu um mandado de segurança no STJ, o que se arrastou por mais de um ano, terminando em um impasse e um pedido de estudo pelos Ministros. Finalmente em abril de 2002 o pedido foi julgado improcedente e a família obrigada a matricular as crianças numa escola regular com o argumento que “a educação dos filhos em casa pelos pais é um método alternativo que não encontra amparo na lei”.

           

          Se a opção é formar-se e trabalhar no exterior, obviamente a facilidade é maior, pois numa eventual volta ao Brasil o que contará serão as oportunidades de trabalho e a experiência, além do currículo. Mas se há uma necessidade de continuidade de ensino, ou obter um reconhecimento do certificado obtido fora do país, a coisa complica um pouco.

Basicamente, para legalizar a situação de alunos que tenham estudado fora do Brasil e queiram obter um certificado de conclusão válido aqui, pode-se tomar alguns caminhos dependendo do tipo de escolarização que se fez no exterior, ou da etapa em que o processo foi interrompido lá fora. Fazer um curso seguido de exame supletivo em 3 meses, realizando as provas das matérias básicas é um dos caminhos. Existem modalidades a distância, e outra com a chamada “presença flexível” (faz-se as provas na escola, mas não é preciso freqüentar as aulas).

   

Outra opção é solicitar a uma escola (regular ou mesmo que tenha supletivo) um exame de reclassificação. Esse expediente foi inserido na legislação brasileira a partir da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, mais conhecida com LDB (Lei 9394/96), para alunos que dominam o conteúdo das séries anteriores ao conteúdo da prova, “independente da escolarização anterior através de uma prova preparada para este fim”. O aluno pode fazer a reclassificação para qualquer série. Entretanto, mesmo assim o aluno precisa cursar regularmente pelo menos o último ano do Ensino Médio e dependerá da escola aceitar realizar o processo de reclassificação.

 

Para quem completou regularmente os estudos e obteve um diploma oficial no exterior, a revalidação de estudos é uma outra alternativa. Em nível Fundamental e Médio, é feita pelas Secretarias Estaduais de Educação. O caminho para revalidar estudos de nível Fundamental e Médio, é longo e burocrático: Estando de posse do histórico escolar ou boletim (original) expedido pela instituição de ensino do país onde foram realizados os estudos, este documento deve ser autenticado pela Embaixada ou Consulado do Brasil naquele país. Em seguida deve-se providenciar a tradução desse documento, de preferência por tradutor público juramentado. Reunidos esses documentos, dirigir-se à Secretaria de Educação do Estado onde irá fixar residência e solicitar equivalência. Mesmo assim, em alguns casos, a Secretaria de Educação poderá exigir a realização de estudos complementares, tendo em vista que, em alguns países, o currículo e o calendário escolar variam em relação àqueles adotados no Brasil.

 

No caso de curso superior, a revalidação é mais simples, feita por uma universidade pública, com curso do mesmo nível e área equivalente respeitando-se os acordos internacionais de reciprocidade ou equiparação. Mesmo assim, também deve passar pela embaixada brasileira no país de origem.

 

Como se pode perceber, educar a bordo tem tudo a ver com velejar pelo mundo: o destino e o percurso podem ser cheios de sol e águas tranqüilas, mas ninguém está livre das eventuais tempestades...

 

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