"Às nove horas em ponto, quando soprava um bom nordeste, empurramos a jangada pra dentro d'água. Ia começar a nossa aventura. O samburá estava cheio de coisas, a barrica cheia d'água e os nossos corações cheios de esperança. Partimos debaixo de muitas palmas e consegui ver de longe os meus bichinhos acenando. Mais de vinte jangadas, trazidas por nossos irmãos de palhoça e de sofrimento, comboiaram a gente até a ponte do Mucuripe. A igreja branquinha foi sumindo e ficou por detrás do farol. Rezei pra dentro uma oração pedindo que a Padroeira tomasse conta dos nossos filhinhos, pois Deus velaria por nós. E assim começou nossa viagem ao Rio de Janeiro...".
Assim Manuel Olímpio Meira, um pescador cearense mais
conhecido por Jacaré, começou seu diário de bordo. Em 1941, ele e mais três
jangadeiros - Mestre Jerônimo (Jerônimo André de Souza), Tatá (Raimundo Correia
Lima) e Manuel Preto (Manoel Pereira da Silva) - saíram do Ceará com destino ao
Rio de Janeiro - na época a capital da República - distante 1.500 milhas
náuticas (mais de 2.700 km), navegando na jangada “São Pedro”. Sem cartas, sem
bússolas e munidos apenas de seu conhecimento prático e coragem, foram
reivindicar junto ao Governo de Getúlio Vargas melhores condições da comunidade
de pescadores de sua região, tentando fazer com que sua profissão fosse
reconhecida, impedindo os pescadores de obter seus direitos trabalhistas. O
pescador Manuel não se conformava com o fato dos jangadeiros não serem donos das
próprias embarcações. Por esse motivo, viam-se obrigados a entregar metade do
resultado da pesca de cada dia aos proprietários das jangadas. A outra
metade tinha que ser dividida entre os quatro pescadores que tripulavam a
jangada. Reivindicavam que a divisão fosse feita na base de 1/5, ou que a
própria colônia possuísse suas jangadas para dar ou emprestar aos
pescadores.
Para levar ao presidente da República as reivindicações da sua
classe, Manuel – que liderava o grupo - esforçou-se para aprender a ler e
escrever. Ele procurou a professora dos meninos da colônia, Lyrisse Porto, e
pediu para alfabetizá-lo. Durante dois anos, ficavam além do horário das aulas
regulares a escola estudando. Nesse tempo também trabalhou para angariar
recursos financeiros e obter autorização para realizar a viagem.
Jacaré nessa época presidia a colônia Z-1, que ficava na praia
de Iracema, em Fortaleza. Ali a então presidente da “Associação de São Pedro”,
entidade religiosa que prestava assistência às famílias dos pescadores,
empreendeu juntamente com Fernando Pinto, presidente do elegante “Jangada
Clube”, que também ficava em Iracema, uma campanha entre autoridades e membros
da sociedade local a fim de levantar fundos para a realização do sonho dos
pescadores. Ao final, havia dinheiro para a construção da jangada, para a compra
de víveres para abastecer os tripulantes e para assistir suas famílias enquanto
os pescadores estivessem fora. Eles navegaram por sessenta e um dias em
condições precárias, enfrentando tempestades, tubarões e calmarias, de Fortaleza
ao Rio de Janeiro.
A autorização para a realização da viagem custou a ser dada.
Houve pressão da imprensa local e também do Rio de Janeiro, onde até o
jornalista Austregésilo de Athayde escreveu uma matéria apaixonada intitulada
"Deixem vir os jangadeiros". Afinal, a Marinha Mercante, a quem foi entregue o
caso, autorizou a partida e mesmo assim somente mediante a assinatura, pelos
quatro, de um termo de responsabilidade.
O “Raide” como foi conhecida a
viagem na época, vinha parando por cidades no litoral e conforme isso acontecia
os pescadores ganhavam notoriedade: eram recebidos pelas autoridades locais e
tinham a cobertura da imprensa. O jornal carioca “Diário da Noite” de 12 de
novembro de 1941 relata um fato curioso, em entrevista com o próprio Jacaré: “Na
hora das bebidas, quando levantaram as taças pra nós, um doutor perguntou quem
estava escrevendo o diário de bordo. Eu disse que era eu. E ele bebeu a cerveja
e disse: - Salve o Pero Vaz de Caminha da jangada! Eu fiquei intrigado: Salve
quem homem? E ele tornou a repetir: - Pero Vaz de Caminha! Aí o Tatá emendou: -
Esse não veio não Senhor...”.
O trecho de Maceió à Bahia, não foi registrado no "diário de
bordo". O trecho a seguir também foi retirado de uma outra entrevista com
Jacaré: "Entre Maceió e Bahia, pertinho da boca do São Francisco, pegamos um
temporal de arromba. A nossa roupa de algodãozinho, pintada com tinta de
cajueiro, começou a rasgar, pois o mar de um mês de viagem estragou o pano. Um
jornalista em Maceió ficou com cara de bocó quando soube que nós não tínhamos
bússola nem cartas de navegação. A gente se guia pelas estrelas e deixa o vento
fazer o resto. Também pertinho de São Salvador vimos cinco ou seis pintadinhos
(tubarões) à flor d'água, com as bocas abertas, prontos para engolir o primeiro
cabra que aparecesse. Largamos eles de mão e continuamos o nosso caminho..." -
contou Jacaré.
Em 15 de novembro a jangada São Pedro entrou nas águas da baía
da Guanabara, acompanhada por muitos barcos que formavam uma procissão. Logo
depois, a jangada foi retirada apoteoticamente da água e colocada em um caminhão
sob aplausos de uma multidão que se aglomerava para ver de perto a chegada dos
heróis. O cortejo seguiu pelas principais avenidas do Rio de Janeiro e na Praça
Mauá um palanque estava montado para os discursos. Ao final do dia eles foram
atendidos por Vargas.
Para Jacaré a importância do fato era imensa: “O
doutor Getúlio Vargas, quando eu topei com ele de proa, viu logo que eu fiquei
nervoso. Menino, eu algum dia pensei falar com o presidente da República? O
presidente ouviu tudinho e ficou tão nosso camarada, que às vezes eu pensava que
nem estava diante do chefe da nação”. Getúlio Vargas entretanto registra o fato
de maneira simplória em seu diário se comparada ao heroísmo, coragem e
importância do ato dos pescadores: “... à tarde, no (palácio) Guanabara, recebo
os jangadeiros cearenses e assisto ao desfile trabalhista em homenagem aos
mesmos”. Nada mais foi anotado.
Os jangadeiros passaram 15 dias na capital,
cumprindo uma agenda “oficial” extensa, sempre acompanhados por agentes do DOPS.
Segundo escreveria mais tarde Edmar Morel, jornalista dos Diários Associados,
Vargas, através do Ministério do Trabalho, queria evitar o contato dos
pescadores com “as esquerdas”...
Os quatro voltaram ao Ceará num avião
Douglas DC3 da Navegação Aérea Brasileira e foram aclamados como heróis,
recebendo medalhas do interventor Menezes Pimentel (na época, os estados eram
governados por interventores nomeados por Vargas). A extensão dos direitos
trabalhistas à classe dos pescadores, incluindo-se a aposentadoria, saiu com a
edição do Decreto-Lei 3.832 em 18 de dezembro, um mês depois da chegada da
tripulação da São Pedro ao Rio de Janeiro.
Mas assim que se encerraram as comemorações, Jacaré e os
outros se defrontaram novamente com a realidade, tendo que pressionar os órgãos
competentes a cumprirem as promessas expressas no decreto presidencial e lutar
para apurar denúncias de irregularidades cometidas pela Federação dos Pescadores
do Ceará.
Orson Welles
No ano seguinte, 1942, o jovem cineasta Orson
Welles veio ao México e ao Brasil para rodar episódios de seu longa-metragem
“It’s all true”. Sem contar musicais e filmes de aventura, este foi o trabalho
onde mais longe uma equipe de Hollywood viajou para gravar um filme. A proposta
de mandá-lo ao Brasil fazia parte da política de boa vizinhança dos Estados
Unidos com países latino-americanos através do chamado “birô interamericano”.
Interessados na ruptura de Vargas com sua recente aproximação do nazismo e na
instalação de bases militares no nordeste, o cineasta foi enviado por Nelson
Rockfeler, diretor do birô e dono do estúdio RKO, para quem Welles trabalhava.
Orson Welles passou então a registrar as favelas cariocas, a pobreza e incluiu o
drama dos pescadores do Ceará, em seu filme, convidando os próprios jangadeiros
para as filmagens. Os rolos de filme que eram enviados para os Estados Unidos
não satisfaziam aos produtores, afinal, encomendaram propaganda e o diretor
mandava a eles os problemas sociais do Brasil.
Várias tomadas da chegada ao
Rio chegaram a ser feitas, no dia 19 de maio. A reconstituição da chegada da
jangada São Pedro devia ser a apoteose do segundo episódio de “It’s all true”,
chamado por Welles de "Quatro Homens numa Jangada". Quando filmavam a
reconstituição da entrada triunfal no porto do Rio de Janeiro, uma manobra
infeliz da lancha que rebocava a jangada a teria virado, jogando ao mar agitado
os seus quatro tripulantes. Três se salvaram. O corpo de Jacaré desapareceu e
nunca foi encontrado.
Nesse mesmo dia, Wells recebeu um telegrama de
George Schaefer, chefe da produtora, anunciando-lhe o fim do financiamento de
"It's all true".
Decidido a terminar "Quatro Homens numa Jangada", Wells
dirige-se, então, à aldeia dos pescadores no Ceará e filma durante quatro
semanas, com atores amadores, uma equipa técnica reduzida e uma velhíssima
câmara Mitchell sem material para colher som. O resultado final foi que, apesar
do esforço do cineasta, o filme acabou sendo abandonado e só ganhou uma montagem
em 1993, oito anos depois da morte do diretor.
Outros pescadores realizaram
viagens ao Rio de Janeiro em suas jangadas, renovando os votos de Jacaré,
Jerônimo, Mané Preto e Tatá. Em 1944 “mestre Jerônimo” repetiu a façanha. Em
1951 novamente com a brecha aberta por Vargas em seu segundo mandato, a jangada
”Nossa Senhora da Assunção” chegou até a baía da Guanabara e o presidente
recebeu os tripulantes – novamente Jerônimo, Manoel Preto e Tatá, desta vez sem
Jacaré e com mais dois tripulantes: Manoel Frade e João Batista. Em 1958 foi a
vez de Luiz Carlos de Sousa (Luiz Garoupa) com a jangada “Maria Tereza Goulart”,
uma homenagem à esposa do vice-presidente trabalhista João Goulart, e os
jangadeiros cearenses foram recebidos pelo presidente Juscelino Kubitschek. Em
1972 outra jangada, chefiada por Eremilson. E a última, em 1993, com o
jangadeiro Mamede Dantas a bordo.
Ao longo dos mais de sessenta anos que nos
separam da primeira viagem heróica, quase nada mudou...
Situação Atual
Mesmo a categoria sendo amparada pela CLT - Consolidação das Leis do Trabalho, Decreto-Lei 5.452 de 1º de maio de 1943, o desconhecimento da legislação, por parte de funcionários do INSS, dificulta a obtenção de aposentadoria, auxílio doença e pensão até hoje. Acontece que ao pescador artesanal é assegurada uma legislação especial, componente da CLT, que o desobriga de contribuição previdenciária junto ao INSS, pagando mensalidade de associado à Colônia. A confusão começa quando são protocolados requerimentos para a obtenção de benefícios previdenciários. Atendentes de balcão se recusam a receber a documentação, sob a alegação de que o profissional não contribui diretamente à Previdência. Os casos são resolvidos em instâncias superiores e demoram meses.
Outras Referências
Recentemente, no início deste ano, a Professora Berenice Abreu de Castro Neves da Universidade Federal Fluminense, analisou a saga dos jangadeiros em sua tese de doutorado sob a dimensão política da viagem sem, entretanto deixar de destacar dos jangadeiros a “dignidade de suas ações, e a majestade dos seus propósitos”. Já Firmino Holanda que já havia escrito o livro “Orson Welles no Ceará” (Edições Demócrito Rocha) e Petrus Cariry, dirigiram o filme “Cidadão Jacaré” (disponível à venda pela internet em DVD) através da DOC-TV, um programa de fomento à parceria entre as televisões públicas e as produções independentes. Nele, cenas originais da chegada da São Pedro e uma entrevista com a própria Professora Berenice Abreu, documentam de maneira definitiva para a história brasileira, a saga desses quatro bravos brasileiros, desconhecidos do grande público.
A Professora Catherine Benamou, da Universidade
de Michigan já morou em Sergipe. Ela é autora do documentário realizado em 1993,
"It's All True”: based on an unfinished film by Orson Welles" (distribuído pela
Paramount em DVD), e do livro "It's All True: Orson Welle's Pan-American
Odyssey" pela editora da Universidade da Califórnia, e trabalhou diretamente com
o filme de Welles. Em entrevista para a Perfil Náutico comentou que “...embora a
política da "boa vizinhança" tenha ajudado os Estados Unidos a se interessar
mais pela cultura e história da América Latina, ainda assim os latinos só
apareciam em condições restritas: como aqueles que entretêm, personagens que
falam inglês muito mal, amantes latinos ou "extras" em um ambiente folclórico.
Welles coloca como o centro de "It's All True" a perspectiva e o talento
latino-americano”.
A Professora Benamou viajou por todas as locações de
filmagem de “It’s All True”: “Encontrei também cenas gravadas nos arquivos da
UCLA (University of California, Los Angeles) que não tinha sido identificadas.
Richard Wilson, produtor do filme de Welles me convidou para trabalhar com ele
nos arquivos. Ele foi muito gentil e me deu várias fotos do filme”,
comenta.
Foi por essa paixão que, quando a “Los Angeles
Film Critics Association” fez uma doação para preservação do seu arquivo em
2000, a Professora Benamou selecionou algumas bobinas do “It´s All True” para o
trabalho. Elas foram apresentadas no Brasil em 2006 no simpósio “Visible
Evidence”. O material é só um fragmento. Mais de 30 mil metros de rolo ainda
estão nas latas, aguardando para serem preservadas e
deteriorando...
Imagem rara das filmagens de Welles no Rio de Janeiro, provavelmente momentos antes da morte de Jacaré (veja a corda que puxa a jangada...), cedida pela Profa. Catherine Benamou para a matéria.
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