Jack London (1876 -1916) foi um dos mais populares escritores entre os romancistas e novelistas da América. Alcoólatra assumido - escreveu um belo texto sobre sua dependência, "John Barleycorn", usado até hoje pelos Alcoólicos Anônimos como modelo - e mulherengo, morreu jovem aos 40 anos, mas não sem ter vivido intensamente e ter deixado como legado uma grande obra e, claro, passando pelo tema que nos interessa: o mar. 
Entre suas obras de ficção, mais famosas como Caninos Brancos (1906) e A Estrada (1907), destaca-se “O Lobo do Mar” que é uma de suas obras-primas. Influenciado pelas ideologias de Marx, Darwin e Nietzsche, Jack London cria, nesta soberba história, a luta entre o bem e o mal. A análise psicológica das situações e dos personagens faz com que “O Lobo do Mar” transcenda o mero romance de aventuras. Escrito em 1904, na plenitude da força criativa do autor, tornou-se um clássico no gênero e foi traduzido para quase todas as línguas.
Mas o verdadeiro destaque para nossa seção “Leitura de Cabeceira” deste mês, é o livro “A Travessia do Snark”. É um romance verdadeiro, quase um diário de bordo, onde Jack conta suas aventuras pelos mares do sul em pleno início do século XX, quando em 1907 lançou-se ao mar com seu veleiro de 43 pés, construído especialmente para essa viagem.   


O Snark

Detalhe: a experiência de London em navegação era a mesma que tinha em construir barcos: zero. Nenhuma. Só quando voltou, após dois anos, ele se deu conta que seu barco tinha 43 pés, e não os 45 que planejara e pagara para construir. Em suas palavras: “Ao voltar para a Califórnia depois da viagem, descobri que o Snark tem 43 pés e não 45. Isso porque o construtor não se entendia bem com a trena...”. A viagem memorável descreve as ilhas e recantos do Pacífico no início do século passado, onde Jack conheceu costumes estranhos, conviveu com leprosos, canibais, desceu à cratera de um dos maiores vulcões do Havaí e voltou para escrever o romance. Bem humorado em sua narrativa, a leitura (ou releitura) é mais que obrigatória. Do livro, destacamos alguns trechos do hilário Capítulo 1, onde ele narra o início de sua aventura às voltas com o veleiro.


Jack e Charmian na proa do Snark

Se você tem um veleiro e já fez qualquer coisa nele, pequena ou grande reforma ou apenas quis ingenuamente trocar uma abraçadeira e ficou horas enrolado com a "lei de jáque", com certeza vai se identificar com essa leitura...

“O Snark é um barco pequeno. Quando considerei 7.000 dólares um custo generoso, era de fato generoso e correto. Eu havia construído celeiros, casas e conheço os traços peculiares que definem seu valor. Pois bem, gastei 30.000. Não me pergunte por quê, por favor. É verdade. Eu assinei os cheques e arranjei o dinheiro. Claro que não há explicação para isso...”.

“Eu lidava com quarenta e sete diferentes tipos de artesãos e cento e quinze diferentes empresas. Nenhum dos artesãos e nenhuma das empresas entregaram a mercadoria na data combinada ou respeitaram os prazos, a não ser o do vencimento dos meus pagamentos. Todos juravam pelas suas almas imortais que entregariam determinada coisa em determinada data; como regra geral, depois de muita insistência raramente cumpriam a palavra em menos de três meses...”.

“As tábuas de resbordo têm 7,5 cm, de espessura, as de revestimento 6,5cm e as do revestimento do convés 5 cm. Eu sei, pois encomendei especialmente na Puget Sound... ... O Snark tem 4 compartimentos estanques. Dessa forma independente do tamanho do rombo, apenas um compartimento se encherá de água...”. 

“Comecei a levar o Snark por entre os barcos apoitados e, antes de sairmos do porto ele foi vigorosamente prensado entre duas barcaças. De repente parou. Estávamos encalhados”. “Tentando sair daquela situação decidimos usar a tal engrenagem que transferia a potencia do motor para o molinete. A engrenagem tinha falhas e explodiu, o motor enguiçou e o molinete não funcionou. O motor de 70 cavalos soltou-se da base quebrada, empinou, todas as conexões e fixações soltaram-se e ele caiu de lado...”. “E por fim saímos velejando. Tínhamos que recolher a âncora na mão porque o transmissor de força estava quebrado, além disso nosso motor estava servindo de lastro no fundo do barco... ...mas isso perdeu a importância porque não tardamos a descobrir que o caixote de laranjas estava estragado, o de maçãs murcho e deteriorado, que os repolhos já estavam podres antes de nos serem entregues, o querosene derramara sobre as cenouras, os nabos estavam lenhosos, as beterrabas emboloradas, as aparas de madeira eram verdes e não davam chama, o carvão fora entregue em sacos podres e espalhara-se pelo convés e estava molhado... ... Dei uma examinada no convés, e em um minuto contei quatorze emendas onde não devia haver nenhuma, nas tábuas do bonito revestimento. Além disso vazava bastante... ...Os costados vazavam, o fundo vazava...quando descia para comer após 4 horas do último bombeamento, chegava a ficar com água pelos joelhos... E os magníficos compartimentos estanques, que custaram tanto dinheiro e tanto tempo não são estanques coisa nenhuma...”.

Após tudo isso o veleiro ainda foi embargado por um oficial de justiça por causa de uma pequena dívida de 230 dólares que por engano não tinha sido paga na confusão. Acertado o problema, partiram afinal para uma aventura de dois anos, que se transformou num livro cheio de deliciosas passagens e descrições interessantes. Se você não conhece “A Travessia do Snark” nem Jack London, o autor, pode ter certeza que está perdendo uma leitura e tanto. 
E se já leu, está na hora de tirar a poeira do livro...

Referências:

http://london.sonoma.edu

O livro “A travessia do Snark” (original em inglês) pode ser baixado gratuitamente no endereço abaixo:

http://onlinebooks.library.upenn.edu/webbin/gutbook/lookup?num=2512

O livro foi editado no Brasil e ainda pode ser encontrado em livrarias e sebos (inclusive na internet).

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